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Ser fã é coisa bem diferente de ser seguidor

  • Foto do escritor: Gabriel Soares
    Gabriel Soares
  • 10 de dez. de 2023
  • 5 min de leitura

Atualizado: 10 de dez. de 2023


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Pura coincidência. A primeira vez que vi o novo livro da escritora argentina Mariana Enriquez eu estava caminhando pelas vielas atrás do GAM, em Santiago, no Chile. Ruminava mentalmente a melodia de Trash, o hit do Suede que tinha tocado na noite anterior, na pista da Blondie. Depois do bloco especial do Pulp o DJ deu play em Trash, e já na minha quarta dose de uísque lembro de ter pensado na escandalosa semelhança entre a música do Suede e o single The first of the gang to die, do Morrissey. Entrei na pequena livraria e comecei a folhear o livro. Eu já tinha lido os contos de Cosas que perdimos en el fuego e também metade de Nuestra Parte de Noche, e só abandonei a leitura porque costumo perder rapidamente o interesse em histórias sobrenaturais, mas confesso que apesar de não ser o meu estilo favorito, estava adorando a viagem de Juan e Gaspar que saíam de Buenos Aires em direção a Posadas. Tantas vezes fiz esse trajeto com meu carro, e enquanto lia as cenas soturnas descritas por Mariana também ia ativando minha memória na reconstrução desses lugares: postos de gasolina abandonados, trevos escuros cruzando pueblos fantasmas, caminhos um pouco sombrios que com certeza podiam ser cenário para histórias de terror. O livro que eu tinha em mãos na pequena livraria em Santiago era diferente, não era ficção. Se tratava de um livro autobiográfico e de uma história de amor de uma fã e sua banda favorita. Com Suede nunca fui muito além dos singles e de um par de músicas mais conhecidas, e por isso mesmo me despertou curiosidade saber que Suede era a banda favorita de Mariana Enriquez. Comprei o livro por impulso depois de ter lido a contracapa. Esse tipo de compra é muito menos comum quando escolhemos livros na Amazon, por exemplo, e explica um pouco porque o desaparecimento das pequenas livrarias é um desastre para leitores que, como eu, são viciados na experiência que está detrás da compra de um livro, leitores aficionados ao toque, ao cheiro, ao peso que esse pequeno objeto descoberto por acaso numa vitrine é capaz de proporcionar. Ler o livro de Mariana Enriquez sobre sua experiência de fã fez ressurgir em mim aquele entusiasmo juvenil da época em que eu colava posters das minhas bandas favoritas no meu quarto, ativou redes mnemônicas que me levaram de volta às paredes descascadas, à pintura apagada pelas colas e fitas adesivas, às páginas das revistas, à textura pegajosa da capa, às dobraduras dos posters internos, ao som brilhante e agudo dos falantes dos radinhos, às caixinhas de CD quebradas, aos encartes perdidos – fico pensando o que vai sobrar na memória para aquelas canções que hoje em dia são somente lançadas em formato digital –, ao desejo de investigar as obras que influenciaram os artistas que eu mais admirava, de ler os livros que estavam escondidos nas letras das canções, de assistir os filmes que inspiraram os videoclipes, de percorrer o caminho inverso do artista e voltar à posição original de fã. Mariana tem praticamente uma história para cada canção da banda, e podemos sentir o efeito mágico que uma música pode gerar: o de proporcionar experiências completamente distintas a partir de uma mesma faixa, pois a relação que se cria entre o ouvinte e a música é sempre única e autêntica. Além da canção em si sempre haverá uma história original que é a de quem escuta, quando escuta, onde escuta. A relação de um fã com uma canção nunca é uma experiência fechada, já dada, mas ao contrário, é uma atividade aberta que além da história íntima e pessoal que cada um tem com a música, também permite a construção de infinitas histórias e significados. Também me entusiasmou, como eu disse, estar de volta à essa posição de investigador, de desbravar e compreender o universo de uma banda a partir da sua discografia, de me entregar à demora das faixas com os olhos fechados, longe do celular e dos algoritmos, protegido dos pop-ups, dos feeds selecionados especialmente para o meu “gosto” e minhas “preferências”, alheio a qualquer padronização que nos engole diariamente nas redes hoje em dia. Sinto que ler o livro de Mariana Enriquez sobre a sua relação com as músicas do Suede me tirou por um instante desse "inferno dos iguais" do qual fala Chul-Han, dessa nuvem que uniformiza tudo e todos, que faz com que nossas conversas na mesa do bar sejam praticamente iguais as da mesa ao lado, porque, no fundo, estamos sendo impactados diariamente pela mesma massa de informação. Escutar a discografia do Suede em pleno 2023 foi, para mim, um exercício de resistência cheio de frescor frente a tudo o que é apenas trend e descartável. Pude valorizar essa relação mais intensa, profícua e ativa resgatada entre artista e fã nas páginas de Porque demasiado no es suficiente – Mi história de amor con Suede. Ler esse livro me fez pensar na sacralidade que deve existir na nossa relação com a música, na verdadeira profundidade dessa experiência, uma chance de escapar da superfície das playlists e dos skips cada vez mais ansiosos, fez lembrar que escutar música deve ser muito mais do que simplesmente distrair-nos com um ruído enquanto exercemos nossa habilidade multi-tasking. Aproveitei a semana de descanso depois da pequena turnê que fizemos com Atalhos pelo Chile e Argentina e ouvi sozinho no meu apartamento em São Paulo o primeiro disco (1993) na íntegra, e também Dog Man Star (1994) e Coming Up (1996). Baixei e assisti Velvet Goldmine, de Todd Haynes, e descobri outros filmes que eu jamais tinha ouvido falar, escutei músicas maravilhosas que provavelmente nunca iria conhecer. Enquanto lia as histórias de Mariana na sua antiga casa em La Plata, não pude deixar de pensar no último show que fizemos ali, duas semanas atrás. O festival na praça aberta em frente a antiga estação de trem reuniu mais de cinco mil pessoas, e acho que foi o maior público que já tocamos até hoje. A maioria ali nunca tinha ouvido falar da gente, mas a conversa com algumas delas depois do show nos fez lembrar de algo que às vezes esquecemos: para algumas pessoas as nossas canções representam algo. Um grupo pediu para tirar uma foto e eu perguntei, meio de sacanagem, se eles conheciam alguma música nossa, e para a minha surpresa falaram Teoría del Cuerpo Enamorado, justamente umas das músicas que tem trechos cantados em espanhol. Alguns dias depois, já de volta ao Brasil, tocamos em Curitiba, numa sala para pouco mais de 80 pessoas. Uma menina me chamou a atenção porque cantou literalmente todas as músicas do show. Depois de tocar fui até ela para agradecer a presença e dizer que tinha me impressionado que ela soubesse todas as letras. Ana, lembro o nome dela, me contou que também adorava as nossas referências literárias, que tinha mostrado a banda pra sua professora de literatura, que tinha lido os livros que falamos nas músicas, falou até de Le Misanthrope, uma canção que nunca tocamos ao vivo e que eu mesmo acho que só ouvi umas três vezes na vida. Foi bom recordar que a nossa música, ainda que em escala minúscula, também gera esse impacto em algumas pessoas. O livro de Mariana Enriquez escancara a brutal diferença que existe entre aquele que é fã e aquele que é simplesmente um seguidor.

 
 
 

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