The Sopranos e mitologia grega
- Gabriel Soares

- 26 de mar. de 2024
- 7 min de leitura
Atualizado: 26 de mar. de 2024

Tive a sorte de assistir The Sopranos ao mesmo tempo que estudava mitologia da Grécia, e nos últimos três meses que intercalei os episódios com algumas tragédias gregas e outros livros, pude confirmar o quanto a série cumpre a função de catarse no espectador, e como o personagem de Tony Soprano pode ser tão absurdamente magnético. Foi inevitável pensar na Hélade como sendo Newark e o escritório nos fundos do bar de strip-tease, Bada Bing, funcionando como o próprio Olimpo. Por que ficamos tão hipnotizados com The Sopranos? Passada aquela sensação de perda depois de assistir a cena final e digerir a tela preta, o silêncio, e então os créditos pela última vez no episódio 86, fui buscar informações de bastidores, principalmente entrevistas no YouTube do seu criador, David Chase. É crucial o que ele conta de uma discussão que teve com a HBO sobre um dos primeiros episódios, College, quando Tony mata com as próprias mãos um personagem que ele acredita ter sido um informante do FBI no passado. A HBO teria dito a Chase que em apenas quatro capítulos ele tinha conseguido construir um dos maiores personagens da televisão americana, e que estava prestes a arruinar isso ao mostrar Tony cometendo, ele mesmo, o assassinato. Para a sorte da HBO e de todos, David Chase não renunciou ao episódio. A partir daí o caminho estava livre para Tony se transformar na maior criação artística da história da televisão. Não é que a violência e a crueldade de Tony o transformassem imediatamente num personagem amado pelo público, nenhum personagem seria capaz de tal coisa somente através disso – nem se todos os espectadores da série fossem uns completos sociopatas, o que obviamente não é o caso. Mas, ao permitir que seu protagonista mostrasse todo o seu lado mais cruel e violento em close-up, a série colocou Tony imediatamente no panteão dos personagens que, como nas histórias gregas, não podem ser medidos simplesmente por conceitos rasos e maniqueístas de bem e de mal. A partir desse episódio, o espectador é obrigado a conviver com inúmeras sensações agridoces, e fica realmente difícil interpretar os sentimentos que tem sobre um personagem que apesar de ser um assassino frio e cruel, ao mesmo tempo é capaz de ser absolutamente terno, gentil e carinhoso. Existe um choque e um sensação que nunca se resolve, de difícil interpretação e que flutua muitas vezes entre simpatia e antipatia, ódio e amor, compaixão e abominação. Você começa a entender que não está assistindo uma série sobre máfia, mas que por trás das cenas que expõem a banalidade e até a comicidade da violência, existem nuances absurdamente mais complexas e que falam diretamente às angústias mais profundas daqueles que ultrapassam a camada mais superficial projetada na tela da televisão e entram num universo completamente diferente. Como nas histórias da mitologia grega, há em The Sopranos material interminável para quem procura investigar o que é humano. O perfil psicológico de Tony Soprano certamente poderia render infinitas páginas de análises e dissertações devido o tamanho da sua riqueza e complexidade. Se é possível dizer que Sófocles, por exemplo, construiu a sua personagem Antígona com uma mistura de traços propositalmente ambígua, fazendo-a flutuar além do bem e do mal, do justo e do condenável, também é evidente a intenção de David Chase em não transformar Tony num personagem com características fechadas e definidas. Seu carisma é apaixonante e nunca se encaixa dentro de nenhum padrão moral. Não temos escolha ao gostar de Tony, apesar de tudo. Muitas vezes ele parece ter atribuições dos deuses gregos, em outras se parece mais com os heróis, aquelas figuras que não são nem deuses nem humanos, mas alguma coisa no meio disso, principalmente quando entendemos que uma das principais características de um herói é ser justamente aquele que extrapola sua própria medida e ultrapassa o seu metrón, caindo inevitavelmente no que os gregos chamavam de hybris. Nas histórias gregas, aquele que ultrapassava sua própria medida despertava a ira dos deuses e em algum momento seria perseguido pelas moiras, as encarregadas de determinar o destino. Tony Soprano é consciente de quem é, do papel que tem e não se esquiva de abraçar toda a sua potência e de ser ele mesmo o seu próprio destino, como pedia Nietzsche. Essa consciência de ação nunca vem de forma gratuita, no caso dele, vem com ataques de pânico. A primeira cena da série mostra Tony aguardando na sala de espera do que será a sua primeira consulta com a psicóloga Dra. Melfi. Daqui até o episódio final da última temporada, o espectador embarca numa análise psicológica que nunca se esgota, e tal como Tony diz numa dessas consultas, apesar de a terapia parecer sempre irresoluta e sem sentido, esses quase 60 minutos de sessão são, nas palavras de dele, a melhor hora da sua semana. Aqui é fácil identificar esse efeito em nós mesmos quando paramos a vida para assistir um episódio de The Sopranos – que tem praticamente a mesma duração de uma sessão de terapia. É o momento que enfrentamos demônios, confrontamos a memória, expurgamos, choramos, rimos, e mergulhamos num mundo interior que muitas vezes fica inabitado enquanto estamos vivendo a vida lá fora do consultório. Não é somente a consciência do próprio destino que gera angústia em Tony, pois ele também é obrigado a tomar muitas decisões pela posição que ocupa, e aqui ele volta a parecer mais com os deuses do panteão grego, em especial, Zeus. Poderíamos nos perguntar se Zeus era capaz de sentir angústias, e fica difícil ter essa resposta, mas com certeza ele foi obrigado a quebrar a cabeça inúmeras vezes para proteger amantes e filhos bastardos da fúria implacável da sua esposa, Hera, e em dezenas de casos era obrigado a solucionar entreveros e contendas de outros deuses que sempre apareciam com reclamações. Portanto, é possível sim imaginar que toda essa carga de estresse pudesse gerar algum tipo de angústia, apesar de ser Zeus e de todo o seu poder. Na Hélade de Tony Soprano, ou seja, em New Jersey, é comum ver Tony tendo o papel de árbitro em diversas disputas de outros mafiosos que, apesar de terem, cada um, poderes especiais e liberdade de ação pra cuidar de seus negócios, sempre deviam prestar contas e entregar uma parte de seus rendimentos a Tony, e em caso de qualquer reclamação ou queixa, quase nenhuma ação mais drástica era permitida sem o aval daquele que era o capo, o skip. A ele cabia arbitrar quando conflitos emergiam e colocavam em risco a estrutura organizacional do grupo. Sua palavra tinha peso de lei e suas decisões eram cumpridas. Quando John Sacrimoni, por exemplo, quer autorização para “clipar” Ralph Cifaretto que zombou da obesidade da sua esposa, é Tony quem decide se é justo autorizar o assassinato por esse motivo ou não. Não são poucas as vezes que, como Zeus, Tony é chamado a julgar e resolver possíveis “injustiças”, como quando Zeus coloca panos quentes no furto que Hermes comete dos bois de Apolo para fazer um churrasco, nesse caso, a situação se resolve com Hermes sendo obrigado a ceder umas de suas criações mais especiais, a lira, para Apolo. São vários os casos que chegam à mesa de Tony no Bada Bing e que esperam a sua soberana decisão e a aplicação da dyke. Em um episódio chave, Tony, totalmente estressado e pressionado pela obrigação de tomar essas decisões, explode num ataque de fúria e pergunta se Chris Moltisanti tem a real compreensão de que cada decisão tomada por ele afeta necessariamente interesses antagônicos de pessoas que ele precisa constantemente manter sob a sua tutela. Chris, que é primo de Carmela, tem a ambição de subir os degraus hierárquicos dentro do grupo, e sonha em um dia ser “captain”, e quem sabe um dia até “boss”, como o próprio Tony, mas fica evidente que a sua falta de maturidade o impede de compreender sobre o verdadeiro peso e a verdadeira responsabilidade dessa posição. Não é à toa que Tony muitas vezes se vê completamente sozinho, e são nesses momentos de completa solidão que ele tem reforçada a sua condição e a sua Moira, ou seja, o seu próprio destino. Apesar de brincar de ser Zeus em Newark, no fundo, Tony reconhece a sua vulnerabilidade e, apesar dos seus amplos poderes, aceita sua condição de mortal e a inevitabilidade da morte. “Pessoas como eu só tem dois finais possíveis, a prisão ou o cemitério”. E abraçado a seu destino vamos ver Tony em todos os 86 episódios da série interagindo com personagens que orbitam, cada um a sua maneira, ao redor da sua impressionante força magnética. Se na mitologia grega as pessoas muitas vezes acabam escolhendo seus deuses e personagens prediletos, em The Sopranos cada um termina escolhendo os seus preferidos (depois de Tony, óbvio) e, no meu caso, poderia citar o seu filho, Anthony Junior. É o personagem que acaba tendo maior pressão psicológica depois de Tony, por ser o único filho homem, aquele para quem naturalmente está reservado o papel de sucessor. Só que AJ não tem nem as características psicológicas, muito menos físicas do pai para ser seu sucessor. Uma das cenas mais emblemáticas é quando AJ se sente na obrigação de vingar Tony e matar seu tio, Uncle Jun, mas simplesmente não consegue realizar o ato na hora decisiva. Chorando, AJ não entende a repressão de Tony pela tentativa, e lembra sobre a cena preferida de Ton no Poderoso Chefão. Nesse momento Tony abraça carinhosamente o filho e diz que ele precisa crescer, que aquilo é somente um filme, e que ele, AJ, era diferente de Tony... ele era um nice guy e não havia sentido em querer tentar ser violento. Como em muitos casos, a relação de Tony com AJ é de extremo carinho e camaradagem, embora em outros seja absolutamente repulsiva, como na época em que Tony diz na terapia que não suporta o próprio filho, dizendo que ele é pequeno e fraco, que havia puxado essa debilidade da família de Carmela, e suspeita que ele possa ser gay. Por outro lado, os genes do lado de Tony não deixaram de estar presentes em Anthony, especialmente aqueles responsáveis pelas inclinações mais angustiosas e existenciais. É na boca de Anthony que David Chase coloca as questões filosóficas mais importantes, mesmo quando ele ainda é pré-adolescente e decide não ir à confirmação da catequese porque dúvida da existência de deus, enquanto um amigo do colégio lhe indica a leitura de Heidegger. Mais tarde, já com vinte e poucos anos, Anthony se mostra como o personagem que condensa o sem sentido da vida em sua potência máxima, e a coloca à prova na tentativa de suicídio. Está tudo ali, disse o criador da série, David Chase. Nas mais de 80 horas de série não há um episódio sequer que você não possa aprender algo sobre o que significa ser humano. Uma experiência grandiosa que muitas e muitas vezes nos faz lembrar dos efeitos que sentimos quando voltamos aos mitos gregos criados há mais de dois mil anos.



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